Um copo

Eu sentei de frente pra ela e na mesa de canto do Charm, ouvindo com atenção sobre algum feito de alguma pessoa que ela conhecia, que ela sempre contava. Uma Skol, dois copos. Continuava atento às palavras e tentava conversar de volta até o garçom deixar na mesa aquela garrafa e um copo de cada lado.

Enchemos, brindamos. Na metade do primeiro copo a voz dela começou a abaixar e minhas mãos começaram a tremer. Olhei pra rua sem ouvir muito bem os sons dos carros, as pessoas, de repente, tudo ficava mudo e só conseguia olhar os copos, com os olhos baixos e perdido num mundo em que só aquilo fazia sentido, por algum motivo.

Passou.

E daquele momento em diante eu soube que em algum tempo, no Charm, só haveria o meu copo na mesa.

Vinte e nove

Estou de joelhos pro mundo. De joelhos, não como quem se prostra, mas como quem se abandona. Um jogador depois de perder o último pênalti na Copa do Mundo. Olhando a tudo cada dia menos surpreso, cada dia mais calado e distante. Eu sinto o mundo me batendo pelas costas, sinto a força da humanidade me crucificar como o que não foi feito pra se encaixar em lugar algum. A quem cobram saúde, roupas limpas e cabelo cortado e que, a despeito disso, segue se alimentando mal de madrugada, usando as mesmas camisetas amassadas e o cabelo desgrenhado como nunca antes. Eu estou sentado à beira do universo, perdendo controle sobre o chão, à beira de um precipício em que tudo parece mais seguro, ao menos, como uma criança que balança os pés sentada num banco de praça muito alto. E eu não sei tocar o chão.
*
Leo, encarando foda a chegada aos trinta, a crise que nunca falha.

Rdio Jives, “Esperança” nov/13

Comecei a usar o Rdio na esperança decrépita de encontrar um grooveshark mais tranquilo e menos lento de usar. Tô curtindo tanto que resolvi fazer a listinha mensal do que mais toca nestes fones de ouvido baratos. Espero conseguir continuar uma lista mensal com essas coisas.

Por falar em esperança, novembro tem sido um mês de esperança. Da vontade de acordar cedo e ver as portas dos comércios abrindo. Embora ainda seja um mês de quartas-feiras pesadas, de lembrar tudo o que tá errado na vida, as coisas parecem um tanto melhores.

Claro que a listinha ajuda.

Abandono de incapaz

Daí tem essa pessoa que deixa um bebê dentro do carro, na rua do freela. Um carro fechado, sim. No primeiro dia, achei estranho, comentei com a tia que também estava apavorada.

Um cara ligou na polícia. Disseram que tinham trocado o bebê por um boneco, ou que o bebê era um boneco, algo sobre um boneco, enquanto o cara do freela jurava que tinha visto o bebê se mexer e tudo.

Eu passei por lá novamente hoje, lá estava o bebê. E, bem, como não vi se mexer novamente, talvez seja mesmo um boneco desses super reais.

Você precisa de um certo esforço pra entender esses bonecos super reais. De um maior esforço pra entender gente que gosta de bonecos super reais. Agora calcule o esforço em entender alguém que deixaria um boneco desses super reais com o cinto de segurança encaixado na cadeirinha especial pra bebês do carro.

Sim, exatamente.

Via NYC

Sem relação alguma, mas lembrei desse caso lendo essa parada que Diego compartilhou do Alt.

Certa vez eu peguei um ônibus indo trabalhar nos idos de 2002 ou 2003. Pois bem, nesta época eu pegava o coletivo num horário super escroto e portanto tinha sempre a remelenta mania de ficar encostado na porta da frente, ao lado do motorista, uma vez que essa porta só se abria quando o ônibus já estava relativamente vazio e eu podia ir pra trás e me acomodar junto aos companheiros de humilhação coletiva diária (acho que chamam de passageiros hoje em dia).

Foi então que uma moça parou ao lado do motorista com um papel e falando palavras aleatórias do tipo “não sei onde”, “moço eu”, “ai, devia ter ligado”. Eu sempre olhava pro painel pra ter certeza de que a placa de “fale com o motorista apenas o indispensável” estava lá. É como ficar cutucando Deus dizendo que você não sabe o que vai ser do seu futuro enquanto, bem, ele está tentando entrar na marginal com um ônibus de infinitas articulações.

Após uns segundos e prestando atenção pra ver se podia ajudar (quem nunca?), eis que a personagem solta a frase:

– Moço, eu preciso ir pro Central Park.

Eu olhei pra trás achando que era pegadinha, ou imaginando que o Luciano Huck talvez aparecesse em algum momento, mas aparentemente a moça pegou realmente um Vila Mariana via Avenida Ibirapuera esperando que ele passasse em Nova York.

O guardador de palavras

Existe uma espécie de êxtase no fato de não ter nada a dizer, algo que lhe pega pelos braços e lhe atormenta, como um amigo com um canudo assoprando bolinhas de papel na sua cara até você se irritar demais e não conseguir controlar seus impulsos e gritar com ele ou qualquer coisa do tipo.

O ponto é que você não consegue ter esse impulso de gritar contra tudo que lhe atormenta. Você fica cheio de palavras. Cheio de palavras que ninguém jamais vai ouvir. Nem seu melhor amigo, nem o taxista, nem quem sabe o barman gente boa que puxa assunto falando do Corinthians.

Existem palavras que jamais serão ditas, ideias que jamais serão divulgadas e pensamentos terríveis que ninguém terá o poder de julgar porque, não, eles jamais serão ditos em voz alta. o êxtase consiste em perceber que aquilo jamais vai sair de você de jeito algum. No momento em que você percebe isso as palavras juntam-se ao que quer que você acredite que liga o seu corpo a sua existência: sua alma, seu espírito, seu karma, seu cérebro. As palavras vão ficar armazenadas. É como uma gigante agulha de heroína que suga um pouco do seu sangue e depois mistura um monte de merda à sua corrente sanguínea (ando falando tanto de drogas depois do Breaking Bad).

As pessoas deixam de dizer o que pensam por pena, por serem covardes, por não acreditarem em si mesmas. Esse não é ponto aqui. As coisas que você diz te livram de algo que você prefere compartilhar com os demais, as coisas que você não diz criam em você um disco rígido de memórias ruins.

Com o tempo você vai descobrir que o seu armazenamento tem um limite. E que você vai começar a despejar palavras ou crises de ansiedade, desespero e pânico com mais frequência. Conversar pouco, assim como dizer pouco o que você pensa, lota a sua existência desse monte de arquivos corrompidos e não existe terapeuta suficiente pra tanta besteira nesse mundo.

Portanto é preciso dizer o que se tem a dizer: “pegue toda a sua honra desperdiçada, cada pequena frustração do passado, pegue tudo o que você chama de problema, é melhor colocá-los entre aspas (…) é bom você saber que no final é melhor falar demais do que nunca dizer o que você precisa dizer”, mas esse é apenas o John Mayer falando.

No final, ou a gente leva em consideração o princípio de arquimedes (ou todas as aulas de física que já tive na vida) que é um grande exemplo de lição dada e jamais executada ou a gente fala tudo que tem na cabeça e arca com as consequências, o que é bem mais adulto e difícil de lidar. De qualquer forma, é bem mais fácil pensar ou andar por aí sem carregar um tanque de guerra moral nas costas do que manter esse monte de palavras atormentando seus pensamentos e te fazendo esquecer que o princípio de Arquimedes tem a ver apenas com a intensidade da força de um corpo submerso na água.

A lição é uma escolha: ou você diz tudo o que pensa e abraça o que vier em troca, ou vai dar ao seu terapeuta a oportunidade de trocar de carro todo ano.

(este post corresponde ao ‘Day 11 – Escreva uma crônica’ do 30 days writing challenge do blog Spleen Juice.)

Caminhando, cantando e cozinhando metanfetamina

Outro dia, passando por um dos bares mais “perigosos” do bairro (digo perigoso apenas como unidade de medida, uma vez que ali estão muitas pessoas erradas na vida, mas em seu habitat natural, portanto tranquilas. Sempre apareço por lá quando me sinto mal – ah, sim, falo do Enoch), pensei em como seria chegar batendo na mesa e derrubando garrafas e copos em cima dos traficantes locais, mandar todo mundo a merda que eles mereciam aquilo mesmo, só pela represália de tomar uns tiros ou ser espancado na frente do lugar. Uma bela forma de morrer, não?

E esse sou eu falando de suicídio. Tenho certeza que em algum momento, meu irmão – que nunca mais deu as caras no Capão Redondo – vai ler isso um dia desses e dizer “CHE CHECHE CHE Esse Robinho é Pesado CHEECHECHEEHEHEH” e depois me contar. Saudades, Diguinho.

Mas veja bem, se você está pensando esse tipo de atrocidades no milionésimo de segundo em que está de passagem pelo traficante no auge da carreira (19 anos), o mesmo que você viu crescer roubando salgado na lanchonete de 50 centavos, alguma coisa está mortalmente errada na sua vida.

(Prefiro muito mais escrever “deadly”, mas entrei numa reabilitação de pedantismo fortíssima aqui).

Daí que esse ano tem de tudo pra ser o ano em que deu bosta. Sabe aquela cena de Independence Day em que fica todo mundo olhando a nave mãe abrir as comportas e então começa a sair uma luz azul bonita e, de repente, ela estraçalha o prédio? Essa vibe, basicamente. Tirando o fato de eu não ter um barril com dez milhões de dólares, 2013 está como a quinta temporada de Breaking Bad: tudo dando errado do pior jeito possível.

A propósito, se estiverem precisando de auxiliares de laboratório para cozinhar metanfetamina, sabem meu número.

Parece cocaína, mas é o banheiro de um posto de gasolina

Daí que ontem pegamos uma sessãozinha de filme na casa de M. pra ver o excelente Searching for Sugar Man, documentário lindo, já tinha assistido, mas achei sensacional rever com os amigos e com um pote de batatas assadas e com suco de uva orgânico e ouvindo os beats de C. e deixando Aline irritada enquanto ela me deixava constrangido dizendo como eu cozinho bem.

E depois de deixar Aline em casa, decidi parar no posto, comprar cigarros, abastecer, enfim. Isso tudo lá pelas duas horas da manhã, quando os postos de gasolina estão cheio de pessoas particularmente irritantes com suas camisas polo e correntes de ouro falso, músicas altas demais e cápsulas de cocaína que tumultuam a fila do banheiro.

Eu perco a linha, eu sei.

Existe um determinado espécime nesse universo que a gente só encontra em postos de gasolina depois das duas horas da manhã. Obviamente existe uma galera na boa como estava na hora em que cheguei lá. Havia um pessoal de canto ao lado do banheiro conversando freneticamente (o pessoal da cocaína), um grupo perto da entrada da loja, numa boa e até um pessoal ouvindo funk na outra ponta, mas num volume surpreendentemente praticável.

Acontece que, logo depois de abastecer, ao tentar passar o cartão, a instituição bancária me fez o grande favor de estar fora do ar. Segui esperando. Sentei pra ver a Florence + The Machine na TV da lojinha de conveniência. Fui alertado que não posso consumir bebida alcoólica dentro da loja. Posso comprar litros encher a mente de cocaína e sair dirigindo, mas não posso sentar nas mesinhas. Posso talvez pegar um guardanapo para enrolar mesclado, mas não posso ver a Florence acompanhado da minha latinha de Itaipava. Posso quem sabe fumar ao lado da bomba de gasolina e bater as cinzas dentro do gatilho de abastecimento, mas não posso sentar a porcaria da bunda numa cadeira com uma latinha de cerveja.

Sério, eu perco a linha.

Resumindo algo que poderia ter contado em quatro linhas – e que fiquei dando voltas apenas para reduzir o bounce rate, aumentar a taxa de duração da vista no blog e muitos outros motivos entre eles coletar as informações dos leitores via IP e transformá-las em bancos de dados para empresas que vendem spam, sério, eu não consigo parar de dizer essas coisas, alguém me ajude – ontem eu passei quatro horas da minha madrugada esperando que a Caixa resolvesse voltar a funcionar.

Com a permissão do frentista que, por sorte, não me imaginou um golpista ou qualquer coisa assim, tomei cerveja sozinho observando os tipos que variavam do pedinte, possivelmente morador de rua, parecido com o Das EFX nos anos 90 passando pelo malandro com corrente de ouro, carro tunado e funk num volume que estava disposto a ecoar na zona sul de são paulo inteira; até o casal visivelmente embriagado que num momento conversava com um cara e no outro fazia uma performance erótica (sim, na frente do cara mesmo). Tudo isso acompanhando o espírito de embriaguez do lugar e tentando usar o banheiro competindo com pessoas que iriam usar NO banheiro.

E essa foi a madrugada de sábado. Podia ter ficado no filme e na companhia manera.

Cracking Music Chronicles #1 “Os Condenados da Terra”

Outro dia assisti o Liberal Arts, um filme dirigido pelo Ted (desculpem, mas depois de How I Met Your Mother não tenho como chamar o cara de Josh Radnor) que tem uma história de amor meio avessa, que era pra ser uma espécie de comédia romântica e acaba soando como um drama muito bonito. Recomendo muito, dá pra ver online, legendado e tudo, coisa fina.

Num trecho do filme, o Ted – que não é só o diretor, como também o ator principal – fala algo sobre como a trilha sonora pode afetar o que a gente sente em relação ao mundo. E, com a trilha sonora certa, todas as pessoas que ele via na rua lhe pareciam amantes em potencial, pessoas lindas, atraentes. Se não me engano demais, acho que ele ouvia música clássica, ou algo assim.

Eu já tinha pensado nisso por muitas vezes, mas a experiência que narro nesse primeiro texto me motivou a buscar melhores trilhas sonoras para cada situação em particular. Portanto quando encontrar no título “Cracking Music Chronicles” (que quer dizer algo como crônicas na tentativa de destravar o código do mundo por meio da música),  você deverá saber que vai entrar nessa viagem infinita ao nada absoluto que é a minha cabeça em relação ao mundo portanto, seja feliz e siga adiante (ou vá fazer umas torradas, porque torradas estão em alta – aqui em casa, pelo menos).

*

Dia desses, numa ida ao centro de carro durante a semana, me peguei no trânsito impraticável da avenida Rebouças. Havia passado no trabalho do amigo A. e pego um CD da banda dele, uma dessas que eu não costumo compartilhar porque muito provavelmente ninguém vai entender. Para resumir bem porcamente, O Mito da Caverna toca música lenta, muito pesada, gritada em quase-óperas de meia hora ou mais. O disco “Os Condenados da Terra” tinha uma só música e se extendia por 33 minutos de um êxtase inacreditável.

(Eu avisei que ninguém ia entender)

Portanto fui pela metade do trajeto ouvindo o disco pela primeira vez, maravilhado com minha ideia rasa de músicos que conseguem contar tempo em músicas com mais de meia hora. O primeiro ato dessa epifania suburbana deu-se dentro do túnel que dá acesso a Rebouças, já no final da primeira audição, num trecho em que se ouve uma declamação com voz de locutor, que destoa dos berros guturais da música toda. Eu estava com os vidros semicerrados, escutando aquele assovio sempre distante vindo das saídas de ar, parado em meio a montes de gente atrasada, motoboys buzinando e me perguntei o que eu fazia ali, dentro daquele túnel, naquela tarde de calor, com aquele bando de gente enfileirada em suas máquinas. Eu sabia o que ia fazer no centro, não é bem essa a questão. A pergunta era sobre o que diabos havia pra mim nisso tudo. Como os anos se passaram até que eu chegasse ali naquela escuridão do túnel, naquela claustrofobia comum. Aquele som me fazia flutuar de maneira indecifrável sobre a história do mundo e descobrir que eu não era muito mais do que uma história num poço sem fundo de histórias e que Deus, em sua grande onipotência, apesar de grandioso e imenso, começava a se reduzir ao tamanho dos homens, sendo ele também mais uma porção de história nesse poço. E daí o trecho da música preencheu o restante da lacuna que se abria em mim:

“Então Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julga seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando, as mulheres, os homens e as crianças e, humilhado, retirou-se para a eternidade”

No segundo ato, eu já estava próximo ao metrô Anhangabaú, parando de semáforo em semáforo, com os vidros fechados, prestando ainda mais atenção em cada trecho da música e ainda mais espantado com tudo. E ali no cruzamento da Sete de Abril fui tomado por outro devaneio desses que me levam pra muito longe. As pessoas andavam em câmera lenta, embaladas pelo ritmo quase fúnebre, envoltas cada uma em seu descaso predileto, um homem andava coberto por um lençol e comia um pedaço de pão, alheio aos timbres de guitarra que na minha mente o faziam macabro, cheio de raiva e desgosto. Mesmo as mulheres e crianças, bem vestidas e preparadas pro mundo me pareciam perdidas, desorientadas, distantes, frutos inconscientes de uma mente perturbada. Era tudo muito bonito, era tudo tão terrível. Era como se tivessem desligado o botão da realidade por trinta e três minutos e eu estivesse experimentando ali cada ranhura e fórmula riscada no código fonte do universo.

das padocas

Daí eu tava longe de casa, numa padoca (vale atentar que o termo “padoca” refere-se mais a um estado de espírito e pode ser uma lanchonete ou bar, desde que tenha um balcão e que sirva pão na chapa) com uns módicos seis reais em notas de dois, esperando que o pão na chapa e um café não saísse mais caro que isso. No fim das contas, o café custava bem barato.

Na TV do lugar, Ana Maria Braga falava sobre tipos de café, com um monte de potinhos cheios de grãos sobre a mesa e uma especialista (sommelier de café, tendência) falando sobre cada particularidade, sobre grãos exóticos, essas porcarias que a gente que toma café todo dia não curte nem ouvir falar.

Eu ali comendo meu pãozinho esquentado com um café quente o suficiente pra você não se ligar muito no gosto, embebido pelo espírito imortal da padoca, enquanto o provável dono assistia decidido a TV, ao mesmo tempo em que contava moedas e notas do caixa. E então Ana Maria Braga mostra um café de uma parte inusitada do mundo, um dos mais caros do planeta, ou qualquer coisa parecida. E então, o dono vira pro cara da chapa:

– Ô Amaral, segunda-feira o pingado vai pra 230 real, hein!

Me sobram motivos pra amar uma boa padoca.