Do verbo evitar

Hoje eu estou evitando.

Evitando comprar brigas aleatórias, responder e-mails sem necessidade, postar no Twitter qualquer porcaria que em três meses eu não entenderia o motivo.

Como disse outro dia, vou perder uns horários de almoço do começo de fevereiro procurando um lugar pra chamar de lar por uns tempos, aqui na região do trabalho. Só quero uma cama, uma TV com HDMI, um media player e uma estante pros livros. Um sistema de som bacana também não seria nada mal. Só quero um espaço pra me largar na tranquilidade que não tenho mais com tanta frequência na casa dos meus pais. E também são 26 anos de roupa passada, né, amigo, já expirou a licença do fabricante.

Nada demais, não briguei feio, nem coisa que o valha, na verdade não me vejo no direito de fazer isso (aliás, com ninguém). Só quero deixar eles e meu irmão por lá, vir trabalhar em 10 minutos, poder ligar em casa com saudade antes de dormir, trocar o chuveiro sozinho, esse tipo de sensação que faz a gente crescer de verdade.

Por enquanto, deixo aqui a melhor música (ou a que mais faz sentido em toda essa intempérie de pensamentos) do disco Oh Gravity! do Switchfoot, banda nova que conheci por um artifício do destino, ou da página de Loads do meu reader, que nunca falha.


Switchfoot, ‘Awakening’

Um dia na cidade grande

Daí que tive três reuniões na sede do trampo hoje. Uma sobre vídeos (cabelo ao vento, gente jovem reunida), outra sobre design das páginas (com o carioca malandro da criação) e outra sobre navegação do site (e meu primeiro contato gentil com o comercial). Foi um desses dias que tem tudo pra dar errado, mas acabam sendo perfeitos no final.

O prédio acolhe o suficiente, o elevador constrange o suficiente, as pessoas usam gravatas azuis com detalhes suficientes e fumam Marlboro light tão frenéticos como num mundo pós apocalíptico em que os cigarros não são mais suficientes para suprir todo o planeta. O chão tem carpetes, as salas de reunião tem TVs de 50 polegadas e a medida de importância dos funcionários varia de acordo com o celular que eles possuem. Diretoria e Presidência estão na categoria iPads, gerentes e supervisores são mais iPhone 4. A horda de compradores e galeré de marketing só usam Blackberry e demais Smartphones com pacotes de dado baratos.

Ah, sim, sabe quando seu pai só bebe Antartica e sua mãe só compra tênis Adidas, porque eles sempre foram bons e nunca vão desapontar? Acontece isso com a máquina de snacks e de café espresso, que estão mais enraizadas cultura na empresa do que qualquer outra coisa.

Saindo de lá, fui encontrar uma amiga e ver umas propostas de freela (dou mais detalhes no futuro, quando algumas coisas estiverem mais fechadas. De cara, posso dizer que fiquei bem feliz com essa última reunião).

Estava ciente de que não teria tempo pra almoçar, pois tive que andar até o Itaú da Faria Lima. Uma sensação que não experimentava há uns bons cinco anos: caminhar em meio à multidão entre meio-dia e duas da tarde, no coração comercial (ou nervoso, como diz meu pai) de São Paulo. O horário de almoço na região da Vila Olímpia, Berrini e adjacências se compara à operação descida da Imigrantes no reveillón. Gente com a estafa corporativa estampada na cara, suada, tomando sorvete nas banquinhas e ciente de que andar rápido não adianta muito, afinal você vai acabar passando a virada (ou acabando seu horário de almoço, neste caso) perdido naquele mar de gente tentando atravessar os túneis (ou a rua, pra finalizar a analogia).

Ao chegar perto do estacionamento, encontrei uma padaria com a melhor esfiha de carne do universo. Recheio tratado afim de não ficar parecendo pastel de feira, além de uma massa envelhecida ao ponto que só os mestres sabem deixar estragar. Pra fechar com chave de ouro minha estada na padaria, um garçom chega e pede pro cara de dentro do balcão: ‘ô Gardenal, passa esse pano seco aí pra mim, valeus!’. Lugar.dos.sonhos.

No final das três primeiras reuniões, fumava com minha chefe do lado de fora do prédio e ela disse o quanto era estranho vir pra São Paulo nas primeiras reuniões que teve na sede, depois de tantos anos pegando estradas e pagando pedágios, sem se preocupar tanto com semáforos ou pedestres. Apesar de tudo, soa realmente estranho ver 50 pessoas esperando o farol fechar pra atravessar a rua, ou os elevadores esturricados e apitando por excesso de peso na hora do almoço. Isso quando o máximo de gente que você pode ver no caminho do trabalho está dentro da padaria, ou no ponto de ônibus.

Foi só outro dia simples na grande metrópole para alguém que, apesar de morar lá, pouco frequenta a cidade natal. Lembro de uma palestra, em que o Ferréz, escritor, citava um conselho de sua mãe: ‘você pode sair, fazer o que eles pedem, rir das piadas deles, comer da comida deles, oferecer o que tem pra oferecer, mas é na sua casa, com os seus, que você volta a colocar os pés no chão pra pensar direito na vida’.

Testemunhos no LinkedIn

Descobri hoje uma nova habilidade que certamente vai me angariar alguns amigos antigos, tenho certeza: sei escrever boas recomendações no LinkedIn apenas omitindo fatos reais. Funciona assim: Eu lembro daquela vez que fulano arregou pra briga no meio da redação e então lanço uma frase parecida com ‘ele sabe onde impor suas opiniões sem afetar o equilíbrio do ambiente’.

Só hoje entendi o propósito das recomendações, e percebi que era exatamente como imaginava, é uma versão corporativa do depoimento do orkut, mas, atente, não é algo espontâneo: as pessoas te pedem através de mensagens pessoais pelo próprio site. Daí você tem que escrever que fulano ‘goza de boa simpatia desde o faxineiros até a presidência’ só pra omitir que ele transou com a empregada e com a Dona Luzia, do comercial, mulher do presidente (e o ‘goza’ morre com você, como uma piada interna sem graça).

É daí pra pior, sério, mas o interessante é que você realmente quer dizer aquilo, só omite por exemplo a rasgação daquela reunião que nego reclamou de salário e da comida do refeitório, gritando que o chefe ganhava o triplo e por isso não tava nem aí! Porque afinal, tudo o que um possível empregador precisa saber é que fulano ‘tem a opinião incisiva e decidida, além de incentivar a reflexão do grupo, ainda que isso implique em longos e fortuitos debates’.

Por favor, algúem me pare!

Nobre Miseré

E essa piada de hoje, via MSN, às 17h19 do segundo tempo?

Cara, não sei, esse negócio de trabalhar longe não tá rolando.

Mais do que cansaço, está me deixando sem paciência para relações sociais em geral em que qualquer pequeno problema se torna uma gloriosa tempestade de maus pensamentos.

Outro dia, voltei pra casa só por ter avistado o trânsito na estrada. Só consegui ir trabalhar após terminar a segunda temporada de How I met Your Mother (que dá uma tranquilizada, mas ainda soa como uma conversa franca com meus melhores amigos, assistam!). Daí que to pensando seriamente em morar em caráter provisório pros lados do trabalho, na grande São Paulo, mesmo com o aviso da Denise sobre as casas de forró agressivas de Jandira, Itapevi e região.

Sério, ao final da semana eu terei a certeza de que alguma coisa vai mudar nesse meu nobre miseré (nota: nobre miseré é um bom nome para uma banda de flautistas hippies filiados ao PSTU).

Minha Tia Paula

Algumas pessoas são responsáveis diretas pelo meu bom entendimento com as letras e a literatura, meu pai por escrever cartas à minha mãe, minha mãe por ser professora, meu tio Nel que me deu um livro de teatro infantil feminino – que só hoje entendi, ele deve ter comprado de última hora, como eu faço sempre com presentes de natal quando preciso – e, entre elas, minha tia Paula, irmã de minha mãe.
Foi na casa dela, lá, no estado mais pobre do país, que descobri a riqueza de Castro Alves, a magia do sertão, a beleza das Iracemas. Foi também lá o primeiro lugar em que estranharam o fato de eu não querer sair e optar por ficar lendo “trancafiado” em casa (coloquei os parênteses porque, ora, não me considero realmente trancafiado quando estou com um livro qualquer sentado numa rede, olhando um rio encher com a chuva amena e uma brisa tranqüila).
Ela tem uma coleção de literatura brasileira bem antiga, dessas cheias de pó, com a capa dura e uns detalhes dourados, vários volumes intocados por anos na prateleira da sala. Se bem me lembro, era dela também a primeira máquina de escrever que tive à disposição para escrever (embora ainda me lembre disso como um sonho antigo de quando era pequeno e que não sei diferenciar da realidade).
Foi também ela que me incentivou a escrever um diário de viagem, um dos meus primeiros contatos com a caneta e o papel em branco. Nada especial, era apenas um garoto descrevendo como era divertida aquela cidade com pessoas iguais às de onde eu tinha vindo, mas que falavam diferente e, sem dúvida, eram mais felizes do que as que ele conhecia.
Além disso, ela me ensinou a comer carne seca de um jeito que só nossa família sabe cozinhar, me chamou de besta por não gostar de peixe e camarão, mas dela eu só conseguia ouvir isso como um filho ouve a mãe, com um ‘você não sabe o que tá perdendo’ implícito. Faz um bom tempo que não vejo seus óculos fundos e não troco palavras por telefone com sua fala mansa e forte, faz tempo que ela não pergunta se já arrumei uma namorada só pra me causar algum constrangimento, talvez ela sequer saiba que isso não me causa mais esse efeito.
Tudo isso é só pra dizer que desde a semana passada minha tia Paula está internada na UTI de um hospital meia boca na capital do estado e que, aqui em casa, estamos completamente aflitos com a possibilidade trágica de perdê-la. Tentei escrever um texto que exemplificasse a dor de minha mãe por estar longe da irmã, mas percebi que nada disso vem ao caso. A semana foi, inclusive, excelente para lembrar cada bom momento como esses que citei. Porque se algo der errado, é nisso que temos de nos apoiar.
Então, por enquanto, eu só me atenho a essas boas lembranças.

Bendita inclusão digital

Nesta semana, por um acaso um tanto trágico que depois explico aqui, passei uma boa parte da noite mostrando algumas maravilhas da modernidade para meus pais no computador. Eles são velhos sim, nunca se interessaram muito por computadores, internet e até hoje não entendem direito cada emprego novo que eu arranjo: ‘ah, tá, redator web, mas o que você faz lá?’, essas coisas.

Então liguei o notebook pelo HDMI na TV.

Daí que entrei no Street View e fomos até Mongaguá, ver a casa da praia, depois voltamos para o condomínio e todos os lugares do Capão que moramos quando eu não tinha idade pra me lembrar. Até na casa da minha avó, a primeira casa que meu pai morou, no Socorro, a escola que virou uma loja de peças, o condomínio que eu ficava na janela vendo meu pai jogar futebol na quadra, o bar do meu tio. Ficaram maravilhados. E então fui pro orkut das minhas primas do Maranhão procurar algumas fotos sem muito sucesso (apesar de ter encontrado umas bem pesadas).

Pra fechar a noite, vimos pelo Youtube umas danças típicas do Maranhão, o bumba meu Boi, minha mãe fica bem emocionada vendo essas paradas, enquanto eu e meu pai não aguentamos por mais de um minuto inteiro porque (a) você não consegue entender bulhufas do que o cara está cantando e (b) a música é infernal demais para eu conseguir explicar.

Ao meu pai falta descobrir a quantidade de filmes que ele pode ter em casa com essa banda larga que assinou (só hoje baixei Guidable do Ratos de Porão, Saw 1 a 4 e três westerns). Se ele aprendesse essa parada ficaria completamente obssessivo. E descobrir isso aqui, esse negócio de escrever um texto num blog pessoal para que, com sorte, algumas pessoas possam saber o que se passa na sua cabeça, deixaria ele maluco também.

Quanto à minha mãe, acho que só de entender como funciona uma webcam, já ficaria de cabelo em pé e não deixaria de entrar no MSN para conversar com seus parentes no outro extremo do país. Só que isso demanda que a parte da família que mora longe também entenda e o processo é extremamente mais complicado.

Muita coisa mudou desde então, eles querem resolver os problemas do computador para que possam pelo menos tentar acessar essas-coisas-que-o-robson-acessa-na-tv. Sempre fico me imaginando nessa idade e se as coisas vão mudar tão rápido que eu não possa acompanhar e meu filho vaio tentar me explicar como ele montou essa empresa pelo celular, essas coisas, mas não é novo pensar que as mudanças causadas pela internet nos últimos 20 anos relegaram gente como meus pais a um triste novo tipo de analfabetismo. E parece um trabalho meu tirá-los disso, estou certo?

*no final das contas, não perdi o post. Mas as críticas ao notepad e ao botão insert seguem firme.

Ted Mosby e amigos



How I Met Your Mother é uma espécie de Friends para quem era adolescente demais quando Friends estourava. Já estou completamente inserido e, graças a rede nova de 16MB, com quase todas as temporadas disponíveis, quem quiser, só deixar um comentário. Sim, eu considero a pirataria entre amigos absolutamente OK.

Desafio assistir aos erros de gravação (valeu, Bloopers & Outtakes) da segunda temporada e não dar uma mínima risada:

Você já viu esse vídeo?

De tempos em tempos, alguém muito empolgado me mostra um vídeo qualquer, geralmente me chamando com frases “caraca, você viu esse aqui do granizo, noossa, se liga, vem ver” ou “porra, bonita essa propaganda, chega aí, emocionante, velho” falando do dia que um sorriso parou São Paulo, ou qualquer desses vídeos que todo mundo com o mínimo de interação social já viu (se não viram nenhum dos dois vejam agora, são só exemplos, não se culpem).

Claro que depende muito da empolgação em questão e do coeficiente de flagelo indireto que você vai provocar, aquilo que vai fazer o cara se sentir um bosta quando você disser ‘mano, você tá vendo ali no canto quando esse vídeo foi postado, isso, 2005, eu vi no terceiro ano de faculdade’. Quando você diz que já-viu-essa-parada, você quer dizer que o cara não é único no mundo. Acontece que, às vezes, é preciso dar às pessoas o sabor de se sentirem especiais. É quase como um auxílio humanitário, mas em proporções obviamente menores.

Então começo a fingir espanto e admiração quase estourando a medida, afetado por um overacting foda (Jim Carrey em ‘O Máscara’, saca?) e tudo acaba bem comigo dizendo ‘po, me passa aí que eu vou encaminhar também’.

Isso também denota meu total e desnecessário apego em manter as coisas bem como estão, por essa deficiência em me intrometer no curso dos acontecimentos ao meu redor. E cada vez que eu finjo, o universo marca um risco na parede.

Uma coisa notável

Esse é meu amigo Leo Pollisson, me fazendo perder as estribeiras emocionais ao ler seu maravilhoso texto sobre sonhos e realizações (‘maravilhoso’? Significa).

Nunca acreditei demais nisso de sonhos e começo a perceber que só consegui assistir as quatro temporadas de The O.C por conta de uma frase dita ainda no piloto: ‘Deixa eu te contar uma coisa, certo? De onde eu venho, ter sonhos não te faz mais esperto. Saber que eles não vão se realizar… isso faz’. Essa era minha relação com a vida até alcançar a necessidade de sonhar, de acreditar que algumas coisas deveriam acontecer e que seria um desperdício estragar a vida sem seus sonhos, sem aquilo que te desprega da cadeira e que você defende com todas as suas forças.

Acho que o maior deles (e mais distante de tudo) é levar uma vida tranquila, onde quer que eu esteja. O que não quer, estritamente, dizer que pretendo levar uma vida boêmia, sem trabalho, um vagabundo perambulando pelas cidades atrás de bares e poetas malditos com quem conversar, meus sonhos beats já se mandaram durante os anos 10. Confesso ainda que trabalharia o dia inteiro, se necessário, caso o fruto desse trabalho desaguasse em minhas prórpias realizações pessoais. Mas talvez esse seja apenas um sonho genérico, afinal, todas as pessoas que conheço querem também suas doses moderadas de paz.

E hoje tenho sim alguns sonhos, influenciado também por essa ‘vida adulta’ que não tarda a me acontecer. Os sinais estão claros: este é o segundo ano que pago meu imposto de renda, terceiro a pagar o IPVA e o primeiro a fazer tarefas domésticas de verdade —o que me acendeu uma lâmpada sobre a cabeça para lembrar que eu moro na casa de meus pais e que aquilo não é a merda de um flat.

Claro que não é só isso, tem os sonhos que são só meus, os materiais & shit. Eu gostaria de ter uma livraria pequena, dessas com banquetas na calçada e um toldo envelhecido. Lembra de ‘Um lugar chamado Nothing Hill?’. Isso, aquela bookstore do Hugh Grant.

Lembro então de um senhor que conheci nos idos de 2003, próximo à Praça da Árvore. Ele tinha transformado uma banca de revista num sebo, na própria avenida Domingos de Moraes. Na época achava sensacional a idéia de estar ali, de arrumar as pilhas à minha frente e só fechar ao anoitecer. Comprei alguns livros, o senhor sabia muito sobre filosofia e me ensinou algo —durante alguns horários de almoço que perdi na caminhada até sua banca— sempre profundo à seus modos grosseiros ‘você tinha dito que acredita no cristianismo, não? leva esse Kant aqui, pode te ajudar’. Acho que esse é o meu sonho palpável. Se um dia eu encontrar o tiozinho, vou perguntar como deu certo pra ele.

Existe também essa lista. Preciso montar bandas, confeccionar zines, criar um projeto de revista, novos blogs desnecessários, falar com o Leo sobre um site de casas de samba em São Paulo que queria montar (e-mails?), fazer uma viagem pro México (agora que não precisa mais de visto dos EUA), outra pra Nova York e a última para Machu Picchu, descendo até o final do Chile e voltando pelo sul do Brasil.

Sonhos tem isso também, eles não precisam de reconhecimento. Basta que você alcance seu objetivo. Pode o mundo inteiro te olhar estranho porque você é dono de uma boa revista e adora distribuir fanzines em shows independentes. A única relação de comprometimento dos seus sonhos é com o que você deseja.

Todos esses sonhos são algo que tentamos fazer parar marcar nossa passagem de certa forma. Não precisamos ser ícones mundiais em tudo aquilo que fizermos, é como diz aquele comercial da Johnnie Walker. Para que em 50 anos depois de partir, alguém ainda lembre de você com um suspiro, um sorriso perdido no horizonte e um menear de cabeça, como se o mundo girasse torto sem você por ali.

 Termino por aqui como o Leo terminou por lá: ‘Mas e ai? Qual o seu sonho?’

2011, um brinde

Reveillón sempre traz de volta aquela sensação da sua tia do interior que você gosta tanto, embora ela cozinhe porcamente. Então ela te oferece o clássico bolo de laranja grudento e doce demais, você diz que está uma delícia, mas não quer outro pedaço.

Todos nós temos sonhos, desejos, fazemos promessas, queremos uma vida perfeita. Listas de desejo para o ano seguinte tendem a fracassar, embora todos as façamos. Emagrecer, estudar mais, parar de fumar. Queremos todos nossos próprios shows de Truman, nossas dramédias particulares, que o mundo gire em função de nossa vida, não o contrário. Don’t get me wrong, o errado nisso não está em querer ou desejar alto demais, mas em não enxergar no espelho exatamente quem somos e o que precisamos para que nossa vida melhore significativamente.

O afastamento da infância me criou sérios problemas de ordem psicológica e comportamental. Substituí a vergonha de conversar com as pessoas por dificuldades de convívio, sublimadas pelo post rock e trilhas sonoras instrumentais de filmes; troquei também alegrias de jogos lúdicos pela rotina de escritório. E também tem isso de perguntarem o que queremos ser quando crescer.

Não viver o que queríamos ser quando crescêssemos é de uma intrincada melancolia. É isso que gera pessoas vazias, enfeitadas e escondidas em seus avatares. Ter o conhecimento de causa, saber que não fui o astronauta, nem o cientista com um laboratório maluco me fez perder a confiança em muita coisa, me fez pensar que o mundo não foi feito pra gente como eu. Mas para tudo, diria Einstein, existe um meio termo (ele diria que tudo é relativo, mas vamos lá).

Uma música um tanto desconhecida diz, ‘Sim, a vida é maior que nós‘. Podemos contar com inúmeros momentos felizes, sempre, por mais passageiros que eles sejam. Costumam dizem que é isso o que ‘dá jogo’ à vida. Estar com seus amigos, lembrar de seus pais, olhar o futuro com esperança e incerteza, é o que nos faz seres humanos. E a felicidade está nesse limbo, nesse meio termo, na linha tênue que separa nossas insatisfações do caminho correto, da vida que esperamos.

A virada do dia 31 para o dia 1º significa então o momento da conclusão do caminho, ou da continuação do caminho, não importa, desde que seja um inevitável rumo à mudança.

Sua tia vai sempre tentar melhorar seu bolo, tal qual o tempo vai sempre tentar melhorar o ano seguinte. E décadas se passam assim. Vão embora deixando algumas saudades e lembranças de outros sabores ruins que gostaríamos de esquecer. No final de tudo sigo dizendo que gostei, embora não aceite mais outro pedaço.